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Diretor da Aliança das Civilizações na ONU critica teoria do choque permanente entre povos

 02/01/2012
Christina Stephano de Queiroz,
de São Paulo (SP)
Fonte: www.brasildefato.com.br


Na enxurrada de matérias feitas sobre o mundo muçulmano nos últimos tempos, não é raro encontrar jornalistas que se apoiam na teoria do choque de civilizações para explicar sua relação com o Ocidente. Alvo de controvérsias, o livro "O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial", publicado pelo estadunidense Samuel P. Huntington em 1997, defende que as diferentes identidades culturais e religiosas dos povos são os principais motivos dos conflitos no mundo após a queda do muro de Berlim.    
Em entrevista exclusiva, Marc Scheuer, diretor do programa Aliança das Civilizações das Nações Unidas (Unaoc) explica que, embora adotada por diferentes intelectuais e meios de comunicação, a teoria de Huntington apresenta falhas. Ele afirma que ela é irreal por considerar os povos entidades monolíticas que possuem um projeto político único e imutável.    

Brasil de Fato — Por que a famosa teoria de Huntington não serve para explicar as relações entre Ocidente e mundo muçulmano?       
Marc Scheuer — Ela ignora que as civilizações são áreas culturais complexas nas quais muitos elementos e influências coexistem e que as relações entre os povos vão muito além de confl itos bélicos. Por isso, a ideia de choque, de uma confrontação global permanente entre os países, não tem fundamento. Depois da Guerra Fria, as fatalidades mais graves do mundo ocorreram dentro de civilizações, sendo algumas das mais sangrentas o genocídio de tutsis pelo governo hutu em Ruanda, em 1994; a limpeza étnica da Guerra da Bósnia entre 1992 e 1995; o banho de sangue ocorrido em Sri Lanka, em 2009; e a guerra entre Iraque e Kuwait, entre 1990 e 1991. Calculamos que, dos 153 maiores conflitos atuais no mundo, 146 ocorrem dentro dos Estados e não entre países, como sugere a teoria do choque.      
Além disso, a grande atenção que Huntington deu ao conflito entre Ocidente e mundo muçulmano também é equivocada. Ele ignora que a maioria dos muçulmanos aspira aos mesmos objetivos que as pessoas do Ocidente — algo cada vez mais evidente com a Primavera Árabe — e desconhece que o islã engloba comunidades com características muito diversas. Também vale lembrar que as divergências entre governos muçulmanos e ocidentais são menos substanciais do que a imprensa mostra.     
Por outro lado, embora não exista choque de civilizações, a cultura e a religião dos povos impactam em suas relações, já que são elementos que contribuem à formação de indivíduos e entidades grupais. Depende da situação, são fatores que se tornam importantes para estabelecer percepções de “nós” e de “outros”. E essas percepções podem ser facilmente exageradas e manipuladas, fomentando preconceitos. Os estereótipos formados a partir dessas ideias geram tensões que se alimentam mutuamente. Dos 153 conflitos que mencionei acima, 97 possuem claras dimensões culturais, que não são necessariamente suas causas, mas podem ser interpretadas como fatores.        

O que motivou a criação da Aliança das Civilizações? Qual sua relação com os atentados de 11 de setembro em Nova York?         
Embora tenham ganhado atenção massiva da mídia, os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York foram somente um evento entre muitos durante uma década de tensões interculturais e interreligiosas entre o Ocidente e o chamado mundo muçulmano. Os atentados em Londres e Madri foram outros acontecimentos relevantes, assim como a crise com a charge do profeta na Dinamarca.          
A Unaoc foi criada em 2005 pela Secretaria Geral das Nações Unidas, com o patrocínio da Espanha e da Turquia, como resposta à crescente polarização do mundo após os atentados de 11 de setembro. É integrada por 128 governos e organizações internacionais, e os Estados Unidos aderiram à iniciativa somente no ano passado. Em abril de 2007, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, anunciou Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal, como o representante máximo da Aliança.    

Qual a importância do programa no contexto da teoria do choque de civilizações?     
A Aliança das Civilizações foi desenvolvida como um contra-argumento político à ideia de que deva existir algo como um choque de civilizações. O programa reconhece que há uma longa troca entre os diferentes povos que não diz respeito somente a conflitos e guerras. Seu objetivo é melhorar o entendimento entre as nações e pessoas de diferentes culturas e religiões e em particular entre o islã e as sociedades do Ocidente. Queremos conter as forças que alimentam todos os tipos de extremismos e estereótipos. E, para conseguir uma paz sustentável, necessitamos combater divisões e percepções equivocadas entre culturas.      
O senhor pode dar exemplos práticos de como a Unaoc funciona?            
O programa tenta abrir caminhos de cooperação prática e que permitam desconstruir estereótipos, por meio de projetos nas áreas de mídia, migração, educação e juventude. Nesse sentido, capacitamos 400 profissionais ao redor do mundo que se conectam com jornalistas de forma a elevar a qualidade das matérias e das análises feitas pela imprensa. Queremos que os jornais tenham em conta essas críticas e fundamentos na hora de publicar textos e notícias relativas a conflitos entre povos. Outras iniciativas são o financiamento de projetos que construam pontes entre culturas e comunidades e um festival de vídeo para jovens chamado Plural+, que visa oferecer ideias para a avaliação de temas complexos como migração, inclusão social e diversidade. A Aliança também organiza fóruns para discussão desses assuntos e a próxima edição ocorrerá em Doha (Qatar), em dezembro. Há uma necessidade real de melhorar a governança da diversidade cultural e promover sociedades mais inclusivas, nas quais as diferenças sejam vistas como elementos positivos e não como problemas.        

De forma resumida, quais seriam os principais desafios do programa hoje?           
Os desafios da Aliança, um projeto ainda muito novo, são os seguintes: fazer com que as pessoas experimentem a diversidade como um benefício e diminuir a polarização cultural e religiosa em diferentes contextos no mundo. Queremos desenvolver ações apropriadas à magnitude dos problemas, mobilizando diferentes instituições e atores da sociedade civil para que eles tomem iniciativas corretas localmente e em níveis globais também. A Aliança também visa reforçar as relações entre a zona euro- mediterrânea, que tem sido de longe nossa principal área de ação. A ideia também é atuar de forma mais relevante e útil na África e em países da Ásia, além de impulsionar uma estratégia que acabamos de criar para a América Latina. Outro desafio é fazer com que o diálogo intercultural e a cooperação entre países passem a integrar a agenda internacional. E, para superar esses desafios, é necessário contar com uma coalizão mais sólida entre países e aumentar a captação de recursos financeiros. 

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Ato realizado na praça Talaat Harb em repúdio ao assassinato 
de manifestantes cristãos pelo exército egípcio - Foto: Jonathan Rashad/CC
O senhor pode dar exemplos práticos de como a Unaoc funciona?            
O programa tenta abrir caminhos de cooperação prática e que permitam desconstruir estereótipos, por meio de projetos nas áreas de mídia, migração, educação e juventude. Nesse sentido, capacitamos 400 profissionais ao redor do mundo que se conectam com jornalistas de forma a elevar a qualidade das matérias e das análises feitas pela imprensa. Queremos que os jornais tenham em conta essas críticas e fundamentos na hora de publicar textos e notícias relativas a conflitos entre povos. Outras iniciativas são o financiamento de projetos que construam pontes entre culturas e comunidades e um festival de vídeo para jovens chamado Plural+, que visa oferecer ideias para a avaliação de temas complexos como migração, inclusão social e diversidade. A Aliança também organiza fóruns para discussão desses assuntos e a próxima edição ocorrerá em Doha (Qatar), em dezembro. Há uma necessidade real de melhorar a governança da diversidade cultural e promover sociedades mais inclusivas, nas quais as diferenças sejam vistas como elementos positivos e não como problemas.        

De forma resumida, quais seriam os principais desafios do programa hoje?           
Os desafios da Aliança, um projeto ainda muito novo, são os seguintes: fazer com que as pessoas experimentem a diversidade como um benefício e diminuir a polarização cultural e religiosa em diferentes contextos no mundo. Queremos desenvolver ações apropriadas à magnitude dos problemas, mobilizando diferentes instituições e atores da sociedade civil para que eles tomem iniciativas corretas localmente e em níveis globais também. A Aliança também visa reforçar as relações entre a zona euro- mediterrânea, que tem sido de longe nossa principal área de ação. A ideia também é atuar de forma mais relevante e útil na África e em países da Ásia, além de impulsionar uma estratégia que acabamos de criar para a América Latina. Outro desafio é fazer com que o diálogo intercultural e a cooperação entre países passem a integrar a agenda internacional. E, para superar esses desafios, é necessário contar com uma coalizão mais sólida entre países e aumentar a captação de recursos financeiros. 





Tímido, mas ciente do seu valor, em março de 1968, aos 87 anos, João Cândido concedeu uma histórica entrevista para o projeto “Depoimentos para a Posteridade”, do Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro. As perguntas foram formuladas pelo historiador Hélio Silva, autor de muitos livros que remontam a trajetória do país, entre eles, 1889: A República não Esperou o Amanhecer, 1926: A Grande Marcha. Coluna Prestes e 1954: Um Tiro no Coração. O Ciclo de Vargas. João Cândido as respondeu com serenidade. Veja a seguir alguns trechos: 




SOBRE A MARINHA 


Você não tem queixas do mar?
Não, o mar é meu amigo. 


Você teria, se possível, pertencido até hoje à Marinha?
Certamente. Eu estaria afastado já, pois já teria passado da idade. 


Então você não guarda queixas da Marinha?
Não, nenhuma. 


SOBRE A CHIBATA E A REVOLTA 


Era um espetáculo de castigo físico e de degradação. Como era esse instrumento?
Quando não eram as varas de marmelo, era uma corda intitulada corda de barca, linha de barca, e sempre os carrascos colocavam agulhas e pregos, preguinhos pequenos, na ponta cobertos... 


Alguma vez você foi chicoteado?
Não senhor, graças a Deus. 


Por que, com o seu tratamento, pelo menos ao senhor um tratamento correto, o que lhe deu o germe que culminou nesta revolta?
Vamos entrar nesse assunto. Já de moço, a rapaziada congregava muitos moços, eles sempre tinham uma certa confiança em mim. Eu, mesmo em criança, já era líder até dos velhos. Eu tinha interesse pelo bem estar de todos, pela saúde de todos e essas coisas. Quando não me dava bem aqui, pedia transferência. Cheguei até o extremo de pedir transferência lá para o nosso velho Amazonas, coitado do Amazonas. Eu conheci o Amazonas em criança e é a mesma coisa de hoje, escravatura, escravidão aqui... 


Você liderou um protesto que se transformou em revolta?
Um protesto que se transformou em revolta. 


Todos eram contra ou havia uma conspiração em curso, havia um movimento articulado para um determinado protesto ou foi uma coisa num dado momento espontâneo, que se generalizou?
Havia uma conspiração, havia uma conspiração de protesto. E a Marinha seguramente sabia, a Marinha toda sabia. 


Portanto, nós vemos não apenas um movimento de protesto, de defesa, de instinto de conservação contra um castigo ultrajante, nós vimos sobretudo, uma tomada de consciência...
Foi um movimento organizado. Levamos mais de dois anos como movimento organizado. 


Esse movimento pretendia, realmente, tomar conta de navios e fazer um ultimato ou pretendia lançar apenas um processo esperando que fosse bem ouvido?
Não senhor, nós pretendíamos era impor, impor como impusemos. Nada nos foi oferecido, nós só impusemos, queremos isso e tem que se decidir por isso. 


No momento em que você tomou conta do navio, você tinha uma especialização, era marinheiro de primeira classe, portanto, você era uma marinheiro já com certos estudos. Era o primeiro timoneiro...
Do Minas Gerais. 


Então você normalmente, quando o navio estava entregue aos oficiais, o que você fazia, qual a sua função, como foi possível você, assumindo o comando, dirigir as manobras do navio. Você já tinha prática de fazer isso sob o comando dos oficiais?
Já, já. A gente já tinha prática, estava tudo dividido. (...) todas as frações, quem devia ocupar os postos de combate... 


Então a marujada executou aquilo que estava habituada a executar, apenas os oficiais não estavam dando ordens, você estava substituindo os oficiais.
Quem estava dando as ordens era eu. Para o Minas Gerais e para todos os navios que haviam aderido ao movimento de pronto, além de que julgamos inconveniente e dispensamos. Dispensamos não, aproveitamos a tripulação nos navios que estavam com a revolução. 


Não havia problema em dirigir. Aquilo que vocês fizeram e que causou espanto a todo mundo, era uma manobra de rotina, você declara em seu depoimento “o resto foi rotina de um navio de guerra”, é uma frase de seu depoimento. Portanto, tudo isto, da parte material de movimentação da esquadra durante esses dias, que causou espanto e que provocou dúvidas, vocês estavam capacitados a fazer. Não foi uma improvisação, vocês faziam aquilo, sabiam fazer.
Além dos conhecimentos que já tínhamos na Marinha, ganhamos mais conhecimentos durante o tempo que estivemos lá assistindo à construção da nova esquadra. Eu, na Marinha, posso dizer, a arte de governar navio não é difícil, mas é espinhosa. Eu só conheci um timoneiro no mundo com maior poder, sabe quem foi? O Kaiser, Guilherme II. 


SOBRE A EXCLUSÃO 


Em que dia se deu a sua exclusão, e como passou a viver como seu Cândido?
No dia 30 de janeiro de 1912. Passei a viver na vida civil. Muito perseguido pela Marinha. 


Nos arquivos da Marinha não consta absolutamente o nome de João Cândido, como se ele não tivesse existido?
Foi sonegado, sonegado mesmo. 


Mas pelo fato de sua exclusão ou por outro fato?
Pelo fato de haver tomado a posição que tomara na revolta, pelo ódio. Muitos oficiais da Marinha não conseguiram comandar o Minas Gerais e eu tive o sobejo poder de dominá-lo, fazer o que ele jamais faria na baía do Rio de Janeiro. Quando eu recebi o ofício escrito que Júlio Medeiros me entregara a bordo do Minas Gerais, que a esquadra seria atacada pelo governo, eu não dei resposta a Júlio Medeiros, preparei meus navios e me fiz ao mar e de lá passei um radiograma para o governo avisando que os navios estavam a 30 milhas da costa do Rio de Janeiro esperando o ataque do governo porque daquela altura nós brincávamos melhor. Esperei lá 24 horas, não apareceu ninguém, retornei à baía do Rio de Janeiro, vim me abastecer, umas 3 ou 4 vezes vinha aqui me abastecer e quando chegava à tardezinha eu fazia ao mar para descansar a tripulação. 

“O socialismo é uma doutrina triunfante”

Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por novas obras
Joana Tavares - Fonte: Brasil de Fato
Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem comum.

O seu método de análise da literatura parte da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor explicaria esse método?
Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.

Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?
Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio.

O que é mais importante ler na literatura brasileira?
Machado de Assis. Ele é um escritor completo.

É o que senhor mais gosta?
Não, mas acho que é o que mais se aproveita.

E de qual o senhor mais gosta?
Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos... Acho que já li “São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.

Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura?
É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas de
trabalho para que os trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem normal.

O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?
Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?

O senhor acha que vai?
Não sei. Eu não tenho nem computador... as pessoas me perguntam: qual é o seu... como chama?

E-mail?
Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo dessas coisas... Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos... que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por novidades.

E o que o senhor lê hoje em dia?
Eu releio. História, um pouco de política... mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.

O senhor é socialista?
Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

Por quê?
Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.

O socialismo como luta dos trabalhadores?
O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o trabalhador.

Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?
Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola... não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.

O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?
O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da 
Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a miséria é intolerável. O socialismo está andando... não com o nome, mas aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão - e isso é bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos... então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).

A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois?
Conheci em Poços de Caldas... essa era uma mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.

E o dever da atual geração?
Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.

No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento, informação, notícia... Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. 
Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.

Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo, resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel.

Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores.
Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.



Tudo é sistêmico

O teólogo e filósofo Leonardo Boff tem dedicado-se nos últimos tempos à luta por um novo paradigma ecológico. Autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística, nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele fala sobre os desafios e também oportunidades de ação e reinvenção diante dos dilemas do sistema político-econômico que acabou por gerar a degradação ambiental. Cooperação, corresponsabilidade e atitudes individuais de amor e respeito, em sua análise, têm poder de transformação da realidade. Leonardo Boff fala também sobre a biodiversidade, espiritualidade e futuro dos países emergentes. 

Brasil de Fato – Como escutar o grito da Terra em um sistema político-econômico surdo para o que não é veloz, lucrativo e produtivo?
Leonardo Boff – Há uma confrontação total entre o sistema econômico vigente e o sistema-vida e o sistema-Terra. Aquele busca a produção cada vez maior em vista do consumo que exige a depredação da Terra e como consequência a produção de perversas desigualdades sociais. Estes visam o equilíbrio de todos os fatores para que a Terra possa manter sua capacidade de reposição dos recursos usados por nós e de integridade de sua natureza. O primeiro tem essa preocupação: quanto posso ganhar? O segundo: como posso produzir em equilíbrio com a natureza e preservando sua vitalidade? Enquanto essa equação não se resolver o grito da Terra nunca será ouvido. E a degradação continuará até um limite não mais suportável que se revela pelo aquecimento global. Aí a humanidade deve resolver: ou mudar ou ir desaparecendo.

A sustentabilidade tem sido usada por vários setores da sociedade para indicar falsas preocupações ambientais, produtos que se autodenominam verdes, empresas que se dizem responsáveis socialmente, mas não o são para com empregados, clientes etc. Frente ao consumo em escala gigantesca, o termo sustentabilidade ou a causa ambiental não estariam sendo absorvidos por um modo de produção que se mostrou fracassado e agressor da vida?
A sustentabilidade e o crescimento econômico obedecem a lógicas diferentes. A sustentabilidade pressupõe a interdependência de todos com todos, a cooperação e a coevolução de todos, respeitando cada ser por possuir valor intrínseco. O crescimento econômico é linear, pressupõe a dominação da natureza e o uso utilitarista dos seres que apenas tem sentido na medida em que se ordenam ao ser humano. A sustentabilidade representa um novo paradigma que se opõe ao paradigma de violência contra a natureza. Exige um novo acordo de sinergia, de respeito e de sentimento de pertença à natureza sendo a parte consciente e responsável dela. A utilização que se faz da sustentabilidade pode melhorar alguns aspectos da redução de gases de efeito estufa, mas não muda a lógica de pilhagem da natureza em vista da acumulação. A Terra será sempre vista como um baú de recursos, nunca como Gaia, como Grande Mãe, um superorganismo vivo que se autorregula de tal forma que sempre se faz apto a produzir e reproduzir vida. 

Como cada um pode colaborar para a reversão da falência da forma de vida e produção que temos até hoje? Em entrevista por ocasião dos 70 anos do senhor, o senhor teria dito: “Nunca aceitei o mundo assim como está”.
A crise é global e por isso atinge a cada um. E cada um é convocado a dar a sua colaboração Uma gota de água caída do céu não significa nada. Mas milhões e milhões de gotas produzem um grande chuva e até uma tempestade. Devemos pensar em termos quânticos: tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e circunstâncias. Tudo se encontra inter-retro-conectado. Então, o bem que pessoalmente faço não fica reduzido ao meu mundo. Entra no circuito das interdependências e pode deslanchar grandes mudanças. Se não posso mudar o mundo, sempre posso mudar esse pedaço de mundo que sou eu mesmo. E aí pode se encontrar a semente de uma grande mudança. 

Me lembro ainda de um artigo do senhor em que propunha refundar a ética diante da crise mundial de valores. Que caminhos temos hoje neste sentido?
Todos os códigos éticos atuais provêm de culturas regionais. Cada cultura produz seus parâmetros éticos para poder criar a convivência mínima entre todos. Ocorre que hoje vivemos uma fase nova da Terra e da Humanidade, a fase planetária. Todos estamos juntos na mesma Casa Comum. Ninguém tem direito de impor seus valores particulares ao todo. Por isso deve-se refundar a ética a partir de algo básico, comum a todos, de forma que todos possam se identificar com aqueles valores e princípios. Eu vejo que o eixo se estrutura ao redor dos valores ligados à vida, à Humanidade e à Mãe Terra. Para mim cinco são os valores de base: o cuidado para com todo o ser; a compaixão para com todos os que sofrem na espécie humana e na natureza; a cooperação de todos com todos porque foi a cooperação que nos permitiu o salto da animalidade à humanidade; a corresponsabilidade por tudo o que existe e vive; devemos ter consciência das conseqüências de nossos atos, alguns dos quais podem ser letais para toda a espécie humana; um senso mínimo espiritual segundo o qual a vida tem sentido, o universo não é absurdo, a verdade sempre representa um valor e o amor é o laço que une todos os seres e traz felicidade à vida. 

Um fórum chamado Geopolítica da Cultura, realizado em novembro de 2010 na Cinemateca, em São Paulo, partiu do pressuposto que as novas economias reunidas no Bric já emergiram e a elas caberá definir o novo papel no mundo que se conforma pós-crise. O senhor acredita nessa possibilidade de gestão autônoma e criativa dos ex-emergentes? O Fórum propôs ainda uma transformação da singularidade cultural brasileira em valor estratégico que beneficie o povo. Pouco depois do final do Fórum, vimos explodir o conflito do tráfico e milícias e polícia no Rio de Janeiro. Ou seja, no outro extremo, outra singularidade brasileira, a violência, tomou a cena. Gostaria que o senhor comentasse.
Os Brics são importantes porque, formando o Grande Sul, quebram a hegemonia do Norte e obrigam as potências econômicas e militaristas a ouvi-los. Na medida em seu peso se fizer sentir, podem definir certos rumos do curso da história atual. Mas em termos de paradigma eles são miméticos: imitam as lógicas de potências ocidentais, lógicas essas que levaram a Terra à atual crise. Elas não são alternativas. Antes, podem acelerar a gravidade da crise. Se a China e a Índia quiseram consumir como o Ocidente (e cada um desses países possui uma classe média de pelo menos de 300 milhões de pessoas) seguramente irão desestabilizar o processo produtivo da Terra, com reflexos imediatos na política mundial. Esta não terá suficientes recursos para atender às demandas desses novos consumidores. Já dizia Gandhi em 1950: “Se a Índia quiser ser como a Inglaterra, ela precisa de duas Terras. A Terra é suficiente para todos mas não o é para os consumistas”.

Quanto mais informadas as pessoas e desenvolvidas as cidades, vemos uma preocupação maior com a sustentabilidade, reciclagem, reuso, alimentação orgânica, preservação dos biomas, plantio de árvores. Entretanto, valores como a solidariedade e ações coletivas ainda encontram obstáculos em sociedades/cidades cada vez mais egoístas, inseguras (literalmente) e materialistas. O senhor concorda? Que caminhos enxerga para as grandes cidades e seus habitantes?
Eu acho que o problema todo se resume numa relação nova para com a natureza e a Terra. Devemos partir da constatação de que pertencemos à natureza, somos a parte consciente e amante da Terra e simultaneamente a parte desequilibradora e destruidora dela. Temos a mesma origem e teremos o mesmo destino. Então se impõe uma relação de sinergia, de respeito, de veneração, de produção do suficiente e do decente para nós e para toda a comunidade de vida que também precisa da biosfera. Se não refizermos a aliança natural para com a Terra e a natureza, poderemos ir ao encontro do pior. Possivelmente só iremos aprender e tomaremos decisões fundamentais quando grandes ameaças atingirem nosso destino e percebermos que não temos outra alternativa senão mudar: o modo de relacionamento para com todos os seres, as formas de produção e de consumo e os espaços de convivência pacífica e tolerante entre os mais diversos povos. Talvez dando espaço ao capital espiritual que não tem limites à diferença do capital material que é limitado, quer dizer, cultivando os valores da solidariedade, da convivência pacífica, do cuidado para com todas as coisas, da espiritualidade explícita como a meditação, a expressão artística e estética, o autoconhecimento e outras dimensões que formam o caráter exaurível e profundamente realizador do mundo espiritual, construiremos um outro caminho que nos leva a uma Terra da Boa Esperança (Ignacy Sachs) e a uma biocivilização.

O quão fundamental é a espiritualidade em tempos bicudos como o atual? Como manter a fé sem ilusões sobre a realidade humana?
Os tempos atuais são dramáticos. Isso não representa ainda uma tragédia anunciada. Mas significa seguramente uma grande crise de civilização. Dizem-nos os antropólogos que em tempos assim fervilham as religiões e se aprofundam os caminhos espirituais. Eles formam aquele campo da experiência humana onde se elaboram os grandes sonhos e utopias, conferindo sentido à vida e rasgando horizontes de esperança. Bem dizia Ernst Bloch: “onde há religião, há esperança”; “o verdadeiro gênese não está no começo, mas no fim”. Isso podemos verificar atualmente. A despeito do caráter fundamentalista de muitas expressões religiosas, há uma efervescência do religioso, do sagrado e do místico irrompendo em todas as partes e em todos os estratos sociais. Quer dizer, os seres humanos estão cansados de materialidade, de eficiência, de consumo e de racionalidade. O segredo da felicidade e a quietude do coração não se encontra nas ciências, nem na acumulação de poder, mas no cultivo da razão sensível e cordial, aquela dimensão do profundo humano onde medram os valores e vige o mundo das excelências. Daí nascem os sonhos e os valores que podem inspirar um novo ensaio civilizatório.

O que o senhor espera (ou tem visto) das rodadas de palestras propostas na sua parceria com a Fundação Avina sobre biodiversidade?
A biodiversidade é o ponto mais vulnerável do sistema-Terra. São as espécies, as mais diversas, e por minúsculas que sejam como insetos, a variedade de plantas e os microorganismos que respondem pelo equilíbrio e a vitalidade da Terra. Tudo é sistêmico. Um pouco mais de calor em uma região faz com que as flores do café murchem, o trigo não se abra e o milho não cresça, obrigando os produtores a mudarem de região. O sistema-Terra é complexo, mas frágil. Mínimas mudanças podem acarretar, devido ao caráter sistêmico, grandes mudanças no todo. Daí é importante valorizar cada ser, cada ecossistema, cada gota de água, pois tudo pode ajudar ou impedir a vida florescer e brilhar. Isso pressupõe um novo olhar diante da natureza, do universo e da Mãe Terra. Essa nova ótica produz uma nova ética, de encantamento, de respeito, de convivência jovial com todos os seres da criação.

Fonte: www.brasildefato.com.br 







Nas últimas semanas, os levantes populares ocorridos no mundo árabe provocaram a destituição do ditador Zine El Abidine Bem Ali, o iminente fim do regime do presidente egípcio Hosni Mubarak, a nomeação de um novo governo na Jordânia e a promessa do ditador de tantos anos do Yemen de abandonar o cargo ao final de seu mandato. O Democracy Now falou com o professor do MIT, Noam Chomsky, acerca do que isso significa para o futuro do Oriente Médio e da política externa dos EUA na região. Indagado sobre os recentes comentários do presidente Obama sobre Mubarak, Chomsky disse: “Obama foi muito cuidadoso para não dizer nada; está fazendo o que os líderes estadunidenses fazem habitualmente quando um de seus ditadores favoritos têm problemas, tentam apoiá-lo até o final. Se a situação chega a um ponto insustentável, mudam de lado”.


Amy Goodman: Qual é sua análise sobre o que está acontecendo e como pode repercutir no Oriente Médio?


Noam Chomsky: Em primeiro lugar, o que está ocorrendo é espetacular. A coragem, a determinação e o compromisso dos manifestantes merecem destaque, E, aconteça o que aconteça, estes são momentos que não serão esquecidos e que seguramente terão consequências a posteriori: constrangeram a polícia, tomaram a praça Tahrir e permaneceram ali apesar dos grupos mafiosos de Mubarak. O governo organizou esses bandos para tratar de expulsar os manifestantes ou para gerar uma situação na qual o exército pode dizer que teve que intervir para restaurar a ordem e depois, talvez, instaurar algum governo militar. É muito difícil prever o que vai acontecer.


Os Estados Unidos estão seguindo seu manual habitual. Não é a primeira vez que um ditador “próximo” perde o controle ou está em risco de perdê-lo. Há uma rotina padrão nestes casos: seguir apoiando o tempo que for possível e se ele se tornar insustentável – especialmente se o exército mudar de lado – dar um giro de 180 graus e dizer que sempre estiveram do lado do povo, apagar o passado e depois fazer todas as manobras necessárias para restaurar o velho sistema, mas com um novo nome. 


Presumo que é isso que está ocorrendo agora. Estão vendo se Mubarak pode ficar. Se não aguentar, colocarão em prática o manual.


Amy Goodman: Qual sua opinião sobre o apelo de Obama para que se inicie a transição no Egito?


Noam Chomsky: Curiosamente, Obama não disse nada. Mubarak também estaria de acordo com a necessidade de haver uma transição ordenada. Um novo gabinete, alguns arranjos menores na ordem constitucional, isso não é nada. Está fazendo o que os líderes norteamericanos geralmente fazem.


Os Estados Unidos tem um poder constrangedor neste caso. O Egito é o segundo país que mais recebe ajuda militar e econômica de Washington. Israel é o primeiro. O mesmo Obama já se mostrou muito favorável a Mubarak. No famoso discurso do Cairo, o presidente estadunidense disse: “Mubarak é um bom homem. Ele fez coisas boas. Manteve a estabilidade. Seguiremos o apoiando porque é um amigo”.

Mubarak é um dos ditadores mais brutais do mundo. Não sei como, depois disso, alguém pode seguir levando a sério os comentários de Obama sobre os direitos humanos. Mas o apoio tem sido muito grande. Os aviões que estão sobrevoando a praça Tahrir são, certamente, estadunidenses. Os EUA representam o principal sustentáculo do regime egípcio. Não é como na Tunísia, onde o principal apoio era da França. Os EUA são os principais culpados no Egito, junto com Israel e a Arábia Saudita. Foram estes países que prestaram apoio ao regime de Mubarak. De fato, os israelenses estavam furiosos porque Obama não sustentou mais firmemente seu amigo Mubarak.

Amy Goodman: O que significam todas essas revoltas no mundo árabe?

Noam Chomsky: Este é o levante regional mais surpreendente do qual tenho memória. Às vezes fazem comparações com o que ocorreu no leste europeu, mas não é comparável. Ninguém sabe quais serão as consequências desses levantes. Os problemas pelos quais os manifestantes protestam vem de longa data e não serão resolvidos facilmente. Há uma grande pobreza, repressão, falta de democracia e também de desenvolvimento. O Egito e outros países da região recém passaram pelo período neoliberal, que trouxe crescimento nos papéis junto com as consequências habituais: uma alta concentração da riqueza e dos privilégios, um empobrecimento e uma paralisia da maioria da população. E isso não se muda facilmente.

Amy Goodman: Você crê que há alguma relação direta entre esses levantes e os vazamentos de Wikileaks?

Noam Chomsky: Na verdade, a questão é que Wikileaks não nos disse nada novo. Nos deu a confirmação para nossas razoáveis conjecturas.

Amy Goodman: O que acontecerá com a Jordânia?

Noam Chomsky: Na Jordânia, recém mudaram o primeiro ministro. Ele foi substituído por um ex-general que parece ser moderadamente popular, ou ao menos não é tão odiado pela população. Mas essencialmente não mudou nada.



Entrevista com Noam Chomsky


Numa entrevista exclusiva falamos com o dissidente político e linguista de fama mundial Noam Chomsky sobre a publicação de mais de 250.000 telegramas secretos do Departamento de Estado dos EUA, por parte da WikiLeaks. Em 1971 Chomsky ajudou o informador de dentro do governo [estadunidense] Daniel Ellsberg a publicar os “Documentos do Pentágono”, um relatório interno secreto dos Estados Unidos sobre a guerra do Vietname. Em comentário a uma das revelações, de que vários líderes árabes pressionam os EUA para atacarem o Irã, Chomsky diz: “As últimas sondagens mostram que a opinião dos árabes é que a maior ameaça na região é Israel, com 80% dos entrevistados, e em segundo lugar vêm os EUA com 77%. O Irã aparece como uma ameaça para 10%”, explica. “Isto pode não aparecer na imprensa, mais de certeza algo que os governos israelita e estadunidense, e os seus embaixadores, sabem. O que isto revela é o profundo ódio à democracia por parte dos nossos dirigentes políticos”.

Amy Goodman: Encontramo-nos com o distinto dissidente político e linguista de reputação mundial Noam Chomsky, professor emérito do Massachusetts Institute of Technology e autor de mais de cem livros, incluindo o seu mais recente Esperanças e realidades, para obter a sua reacção aos documentos da WikiLeaks. Há quarenta anos, Noam e Howard Zinn ajudaram o denunciante de dentro do governo Daniel Ellsberg a editar e publicar os “Documentos do Pentágono”, a história interna ultra-secreta dos EUA da guerra do Vietname. Noam Chomsky fala-nos a partir de Boston… Antes de falarmos da WikiLeaks, qual foi a sua participação nos “Documentos do Pentágono”? Não creio que a maioria das pessoas esteja informada sobre isso.
Noam Chomsky: Dan e eu éramos amigos. O Tony Russo também os preparou e ajudou a filtrá-los. Recebi cópias do Dan e do Tony e várias pessoas as distribuíram à imprensa. Eu fui uma delas. Então o Howard Zinn e eu, como você disse, editámos um volume de ensaios e indexámos os documentos.

Amy Goodman: Explique como funcionou. Penso sempre que é importante contar essa história, especialmente aos jovens. Dan Ellsberg – funcionário do Pentágono com acesso ao máximo segredo – saca da sua caixa de fundos essa história da intervenção dos EUA no Vietname, fotocopia-a, e então como veio parar às suas mãos? Entregou-lha directamente a si?
Noam Chomsky: Chegou-me por intermédio de Dan Ellsberg e de Tony Russo, que tinham feitos as fotocópias e preparado o material.

Amy Goodman: Foi muito editado?
Noam Chomsky: Bem, nós não modificámos nada. Não corrigimos os documentos. Ficaram na sua forma original. O que fizemos, o Howard Zinn e eu, foi preparar um quinto volume além dos quatro que apareceram, que continha ensaios críticos de muitos peritos sobre os documentos, o que significavam, etc. E um índice, que é quase imprescindível para poderem ser seriamente utilizados. É o quinto volume da série da Beacon Press.

Amy Goodman: Então foi um dos primeiros a ver os documentos do Pentágono?pentagono
Noam Chomsky: Sim, para além do Dan Ellsberg e do Tony Russo. Quer dizer, talvez tenha havido alguns jornalistas que puderam vê-los, mas não tenho a certeza.

Amy Goodman: E actualmente, o que pensa? Por exemplo, acabamos de reproduzir o vídeo do congressista republicano Peter King, que diz que se deveria declarar a WikiLeaks como organização terrorista estrangeira.
Noam Chomsky: Penso que é revoltante. Temos de compreender – e os Documentos do Pentágono são outro exemplo claro – que uma das principais razões do segredo governamental é proteger o governo contra a sua própria população. Nos Documentos do Pentágono, por exemplo, houve um volume – o volume das negociações – que poderia ter tido influência nas actividades em curso, e o Daniel Ellsberg não o revelou logo. Apareceu pouco depois. À vista dos documentos propriamente ditos, há coisas que os estadunidenses deveriam ter sabido e que outros queriam que não se soubessem. E, que eu saiba, pelo que eu próprio vi deste caso, agora é o mesmo. De facto, as revelações actuais – pelo menos as que eu vi – são interessantes, sobretudo pelo que nos esclarecem sobre como funciona o serviço diplomático.

Amy Goodman: As revelações dos documentos acerca do Irã aparecem precisamente no momento em que o governo iraniano aceitou uma nova ronda de conversações nucleares para o começo do próximo mês. Na segunda-feira, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu disse que os telegramas reivindicam a posição israelita de que o Irã constitui uma ameaça nuclear. Netanyahu disse: “A nossa região tem estado presa a uma narrativa que é o resultado de sessenta anos de propaganda que apresenta Israel como principal ameaça. De facto, os dirigentes compreendem que esse ponto de vista está na falência. Pela primeira vez na história existe um acordo de que a ameaça é o Irã. Se os dirigentes começarem a dizer às claras aquilo que têm dito à porta fechada, podemos realizar uma mudança radical na caminhada para a paz.” A secretária de Estado Hillary Clinton também falou do Irã na sua conferência de imprensa em Washington. Disse o seguinte:
Hillary Clinton: “Creio que não deveria ser surpresa para ninguém que o Irã é uma fonte de grande preocupação, não só para os EUA. Em todas as reuniões que tenho, em qualquer parte do mundo, aparece a preocupação com as acções e as intenções do Irã. Por isso, qualquer dos alegados comentários dos telegramas confirma que o Irã representa uma ameaça muito séria do ponto de vista dos seus vizinhos e uma preocupação muito séria muito para além da sua região. Por isso a comunidade internacional se reuniu para aprovar as sanções mais duras possíveis contra o Irã. Isso não aconteceu porque os EUA tivessem dito ‘Por favor, façam isso por nós!’. Aconteceu porque os países – depois de avaliarem as provas quanto às acções e às intenções do Irã – chegaram à mesma conclusão que os EUA: que temos de fazer o que pudermos com o fim de unir a comunidade internacional para que ela actue e impeça o Irã de se converter em um Estado com armas nucleares. De modo que, se os que lerem as histórias sobre esses, em supostos telegramas, pensarem cuidadosamente, chegarão à conclusão de que as preocupações com o Irã são bem fundadas, são amplamente partilhadas e continuarão a ser fundamento para a política que mantemos com os países que têm a mesma opinião, para impedir que o Irã adquira armas nucleares.”

Amy Goodman: Assim falou a secretária Hillary Clinton, ontem, numa conferência de imprensa. Qual o seu comentário sobre Clinton, sobre o comentário de Netanyahu, e o facto de Abdullah da Arábia Saudita – o rei que está a ser operado às costas em Nova Iorque – ter incitado os EUA a atacarem o Irã.
Noam Chomsky: Isso só vem reforçar o que eu disse antes, que o significado principal dos telegramas que têm sido publicados é, até agora, o que nos dizem sobre os dirigentes políticos ocidentais. Hillary Clinton e Benjamin Netanyahu de certeza conhecem as cuidadosas sondagens da opinião pública árabe. O Brookings Institute publicou há poucos meses amplas sondagens sobre o que pensam os árabes acerca do Irã. Os resultados são bastante impressionantes. Mostram que 80% da opinião árabe considera que a maior ameaça na região é Israel. A segunda maior ameaça são os EUA, com 77%. E o Irã só é referido como ameaça por 10%. No que diz respeito às armas nucleares, de um modo bastante notável, há 57% que diz que, se o Irã possuísse armas nucleares, isso teria um efeito positivo na região. Pois bem, não se trata de cifras pequenas. 80% e 77%, respectivamente, dizem que Israel e os EUA constituem a maior ameaça. 10% dizem que o Irã é a maior ameaça.
Claro que, aqui, os jornais nada dizem sobre isso – dizem-no na Inglaterra – mas é certamente algo que os governos de Israel e dos EUA e os seus embaixadores sabem muito bem. Mas não se vê aparecer uma palavra sobre isso. O que isso revela é o profundo ódio à democracia por partes dos nossos dirigentes políticos e dos dirigentes políticos israelitas. São coisas que nem referidas podem ser. Isso impregna todo o serviço diplomático. Não há nenhuma referência a isso nos telegramas.
Quando falam dos árabes referem-se aos ditadores árabes, não à população, que se opõe rotundamente às conclusões dos analistas, neste caso Clinton e os médias [a mídia]. Também há um problema menor que é o maior problema. O problema menor é que os telegramas não nos dizem o que pensam e dizem os dirigentes árabes. Sabemos o que foi seleccionado daquilo que disseram. De modo que há um processo de filtragem. Não sabemos o quanto a informação é distorcida. Mas não restam dúvidas: o que é mesmo uma distorção radical – ou nem sequer uma distorção, mas sim um reflexo – é a preocupação de que o que importa são os ditadores. A população não importa, mesmo se se opõe totalmente à política estadunidense. Há coisas semelhantes noutros sítios, como as que têm a ver com essa região.
Um dos telegramas mais interessantes foi aquele de um embaixador dos EUA em Israel para Hillary Clinton, que descrevia o ataque a Gaza – que deveríamos chamar o ataque israelo-estadunidense a Gaza – em Dezembro de 2008. Indica correctamente que houve uma trégua. Não acrescenta que durante a trégua – que de facto Israel não respeitou mas o Hamas respeitou escrupulosamente segundo o próprio governo israelita –, não foi disparado um só míssil. É uma omissão. Mas logo surge uma mentira directa: diz que em Dezembro de 2008 o Hamas retomou o disparo de mísseis e que por isso Israel teve de atacar para se defender. Acontece que o embaixador não pode deixar de saber que há alguém na embaixada dos EUA que lê a imprensa israelita – a imprensa israelita dominante – e nesse caso a embaixada tem de saber que é exactamente o contrário: o Hamas estava a pedir uma renovação do cessar-fogo. Israel considerou a oferta, recusou-a e preferiu bombardear em vez de optar pela segurança. Também omitiu que Israel nunca respeitou o cessar-fogo – manteve o cerco [a Gaza] em violação do acordo de trégua – e em 4 de Novembro, dia da eleição de 2008 nos EUA, o exército israelita invadiu Gaza e matou meia dúzia de militantes do Hamas, o que motivou trocas de tiros em que todas as vítimas, como de costume, foram palestinianas. De imediato, em Dezembro, quando terminou oficialmente a trégua, o Hamas pediu que ela fosse renovada. Israel recusou e os EUA e Israel preferiram lançar a guerra. O relatório da embaixada é uma falsificação grosseira, e é muito significativa porque tem a ver com a justificação do ataque assassino, o que significa que ou a embaixada não fazia ideia do que estava a acontecer ou estava a mentir descaradamente.

Amy Goodman: E o último relatório que acaba de aparecer – da Oxfam, da amnistia Internacional e de outros grupos – sobre os efeitos do cerco de Gaza? O que está a acontecer agora?
Noam Chomsky: Um cerco é um acto de guerra. Se alguém insiste nisso é Israel. Israel desencadeou duas guerras – 1956 e 1967 – em parte na base de que o seu acesso ao mundo exterior estava muito restringido. Esse mesmo cerco parcial que consideraram como um acto de guerra e como justificação – bem, uma entre várias justificações – para o que chamaram “guerra preventiva” ou, se preferir, profilática. Assim o entendem perfeitamente e o argumento é correcto. Um cerco é, desde logo, um acto criminoso. O Conselho de Segurança, e não só, instaram Israel a que o levantasse. Tem o propósito – como declararam os funcionários israelitas – de manter o povo de Gaza num nível mínimo de existência. Não querem gaza-1matá-los todos porque não seria bem visto pela opinião internacional. Como eles dizem, “mantê-los em dieta”.
Esta justificação começou pouco depois da retirada oficial israelita. Houve umas eleições em Janeiro de 2006 – as únicas eleições livres em todo o mundo árabe – cuidadosamente monitorizadas e reconhecidas como livres, mas tiveram um defeito. Ganharam os que não deviam ganhar. Ou seja, o Hamas, os que Israel e os EUA não queriam. Rapidamente, em muito poucos dias, os EUA e Israel impuseram duras medidas para castigar o povo de Gaza por ter votado mal em eleições livres. O passo seguinte foi que eles – os EUA e Israel – trataram, em colaboração com a Autoridade Palestiniana, de provocar um golpe militar em Gaza para derrubar o governo eleito. Fracassou. O Hamas derrotou a tentativa de golpe. Foi em Julho de 2007. Então endureceram consideravelmente o assédio. Entretanto ocorreram numerosos actos de violência, bombardeamentos, invasões, etc.
Mas basicamente Israel afirma que, quando se estabeleceu a trégua no verão de 2008, o motivo por que Israel não a observou, retirando o cerco, foi o facto de um soldado israelita – Gilad Shalit – ter sido capturado na fronteira. Os comentadores internacionais consideram isso um crime terrível. Bem, pode-se pensar o que for, a captura de um soldado de um exército atacante – e o exército estava a atacar Gaza – não chega aos calcanhares do crime que é sequestrar civis. Precisamente na véspera da captura de Gilal Shalit na fronteira, as tropas israelitas tinham entrado em Gaza, sequestraram dois civis – os irmãos Muammar – e levaram-nos para o outro lado da fronteira. Desapareceram algures no sistema carcerário de Israel, onde centenas de pessoas, talvez mil, são detidas sem acusação por vezes durante anos. Também há prisões secretas. Não sabemos a que se passa nelas. Isto é, por si só, um crime muito pior do que o sequestro de Shalit. De facto, poder-se-ia argumentar que houve uma razão para se ter silenciado o facto. Israel, durante anos, de facto durante décadas, tem vindo a comportar-se assim: raptos, capturas de pessoas, sequestros de barcos, assassinatos, levar gente para Israel por vezes como reféns durante anos e anos. De modo que isso é uma prática habitual; Israel pode fazer o que entende. Mas a reacção, aqui e no resto do mundo, ao sequestro de Shalit – que não é um sequestro, não se sequestra um soldado, mas captura-se – é considerá-lo um crime horrendo e uma justificação para manter o cerco e assassinar… uma desgraça.

Amy Goodman: Então temos a Amnistia Internacional, a Oxfam, a Save The Children e outras dezoito organizações de ajuda a instarem Israel para que levante, sem condições, o bloqueio a Gaza. E a WikiLeaks publica um telegrama diplomático estadunidense – transmitido ao Guardian pela WikiLeaks – que conta: “Directiva nacional de recolha de informações humanas: Pede-se ao pessoal dos EUA que obtenha pormenores de planos de viagem, como itinerários e veículos utilizados por dirigentes da Autoridade Palestiniana e membros do Hamas”. O telegrama pede: “Informação biográfica, financeira, biométrica de dirigentes e representantes mais importantes da A.P. e do Hamas, incluindo a Jovem Guarda, dentro de Gaza e da Cisjordânia, e fora”, diz.
Noam Chomsky: Isso não deveria ser uma surpresa. Contrariamente à imagem que é projectada neste país, os EUA não são um intermediário honesto. São participantes, e participantes directos e cruciais, nos crimes israelitas, tanto na Cisjordânia como em Gaza. O ataque a Gaza foi um caso claro: utilizaram armas estadunidenses, os EUA bloquearam as tentativas de cessar-fogo e deram apoio diplomático. O mesmo vale para os crimes diários na Cisjordânia, e não devemos esquecê-los. Na realidade, a [ONG] Save The Children informou que na área C – a parte da Cisjordânia controlada por Israel – as condições são piores do que em Gaza. Também isto acontece porque há um apoio crucial e decisivo dos EUA, tanto no plano militar como no económico; e também ideológico – o que tem a ver com a distorção da situação, como acontece também, dramaticamente, com os telegramas.
O próprio cerco é, em si mesmo, simplesmente criminoso. Não somente bloqueia a ajuda desesperadamente necessária como, além disso, afasta os palestinianos da fronteira. Gaza é um local pequeno e superpovoado. E os tiros e os ataques israelitas afastam os palestinianos do território árabe junto da fronteira e também impõe aos pescadores de Gaza o limite das águas territoriais. São forçados por canhoneiras israelitas – é tudo o mesmo, claro está – a pescar junto à costa onde a pesca é quase impossível porque Israel destruiu os sistemas eléctricos e de saneamento e a contaminação é terrível. É apenas um estrangulamento para castigar as pessoas por estarem ali e por insistirem em votar “mal”. Israel decidiu: “Não queremos mais isto. Livremo-nos deles.”
Também deveríamos lembrar que a política israelo-estadunidense – desde Oslo, desde o começo dos anos 1990 – foi osloseparar Gaza da Cisjordânia. É uma violação directa dos acordos de Oslo, mas foi sendo implementada sistematicamente e teve muitas consequências. Significa que quase metade da população palestina ficaria à margem de qualquer possível acordo político a que se pudesse chegar. Também significa que a Palestina perde o seu acesso ao mundo exterior. Gaza deveria ter aeroportos e portos marítimos. Até agora Israel apoderou-se de cerca de 40% do território da Cisjordânia. As últimas ofertas de Obama oferecem-lhe ainda mais, e certamente os israelitas planeiam apoderar-se de mais. O que resta são pedaços de território cercados. É o que o planificador Ariel Sharon chamou bantustões. E estão também na prisão, enquanto Israel se apodera do Vale do Jordão e expulsa os palestinianos. Todos esses são crimes de uma só peça. O cerco de Gaza é particularmente grotesco dadas as condições de vida a que obriga as pessoas. Quero dizer, se uma pessoa jovem em Gaza – estudante em Gaza, por exemplo – quer estudar numa universidade da Cisjordânia, não pode fazê-lo. Se uma pessoa de Gaza precisa de um estágio ou de um tratamento médico sofisticado num hospital de Jerusalém Oriental, não pode lá ir! E não deixam passar os medicamentos. É um crime escandaloso, tudo isso.

Amy Goodman: Na sua opinião, que deveriam fazer os EUA neste caso?
Noam Chomsky: Aquilo que os EUA deveriam fazer é muito simples: deveriam unir-se ao mundo. Quero dizer que supostamente existem negociações. Tal como são apresentadas aqui, o quadro tipicamente traçado é de que os EUA são um intermediário honesto que procura unir os opositores recalcitrantes – Israel e Autoridade Palestiniana. Isso não passa de uma farsa.
Se houvesse negociações sérias, seriam organizadas por uma parte neutral e os EUA e Israel estariam de um lado e o mundo estaria do outro. Não é um exagero. Não deveria ser segredo que desde há muito tempo existe um consenso internacional completo para uma solução diplomática, política. Todos conhecem as linhas básicas. Alguns detalhes, sim, poderão ser discutidos. [Nesse consenso] incluem-se todos, excepto os EUA e Israel. Os EUA têm vido a bloquear a solução ao longo de 35 anos, com derivas ocasionais, e breves. [Esse consenso] inclui a Liga Árabe. Inclui a Organização dos Estados Islâmicos, que inclui o Irã. Inclui todos os protagonistas relevantes com excepção dos EUA e de Israel, os dois Estados que o recusam. De modo que, se houvesse alguma vez negociações sérias, é assim que seriam organizadas. As negociações que há chegam apenas ao nível da comédia. O tópico que está a ser discutido é uma nota de rodapé, uma questão menor: a expansão dos colonatos. Claro que é ilegal. De facto, tudo o que Israel está a fazer em Gaza e na Cisjordânia é ilegal. Nem sequer tem sido polémico, desde 1967 (…)

Amy Goodman: Quero ler-lhe agora a mensagem-twitter de Sarah Palin – a ex-governadora do Alaska, claro, e candidata republicana à vicepresidência. É o que ela colocou no twitter sobre a WikiLeaks. Rectifico, foi colocado no Facebook. Ela diz: “Primeiro, e antes de mais, que passos foram dados para impedir que o director da WikiLeaks, Julian Assange, distribuísse esse material confidencial altamente delicado, sobretudo depois de ele já ter publicado material, não uma vez mas duas, nos meses anteriores? Assange não é um jornalista, é-o tanto como um editor da nova revista da al-Qaeda em inglês “Inspire”. É um agente anti-EUA que tem sangue nas mãos. A sua anterior publicação de documentos classificados revelou aos talibãs a identidade de mais de 100 das nossas fontes afegãs. Porque não persegui-lo com a mesma urgência com que perseguimos os dirigentes da al-Qaeda e dos talibãs?” Que lhe parece?
Noam Chomsky: É exactamente o que se esperaria de Sarah Palin. Não sei o que ela entende ou não, mas acho que devemos dar atenção ao que nos dizem as revelações [da WikiLeaks]… Talvez a revelação, ou referência, mais dramática seja o ódio amargo à democracia revelado tanto pelo governo dos EUA – Hillary Clinton e outros – como pelo corpo diplomático. Dizer ao mundo – bem, de facto estão a falar lá entre eles – que o mundo árabe considera o Irã como a principal ameaça e que deseja que os EUA bombardeiem o Irã, é extremamente revelador, sabendo eles, como sabem, que cerca de 80% da opinião árabe considera os EUA e Israel como a maior ameaça, que 10% consideram o Irã como a maior ameaça, e que uma maioria de 57% pensa que a região teria a ganhar se o Irã tivesse armas nucleares, que funcionariam como um dissuasor. Isso, eles nem sequer o referem. Tudo o que referem é apenas o que foi dito pelos ditadores árabes, os brutais ditadores árabes. Isso é que conta.
Não sabemos até que ponto é representativo do que dizem, porque ignoramos qual é o filtro. Mas isto não importa muito. O aspecto mais importante é que [para eles] a população é irrelevante. Só interessam as opiniões dos ditadores que apoiamos. Se nos apoiam, então eles são o mundo árabe. É um quadro bem revelador da mentalidade dos dirigentes políticos dos EUA e, pode-se presumir, da opinião das elites. A avaliar pelos comentários que têm aparecido aqui. E é também o modo como tem sido apresentado na imprensa. O que pensam os árabes, isso não interessa.

Tradução do inglês: Passa Palavra




Entrevista com Ricardo Antunes


Quem é a classe trabalhadora de hoje?



Recentemente foi lançada a edição nº 07 da revista Margem Esquerda, publicação da Boitempo Editorial. A revista traz um artigo instigante do professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Ricardo Antunes. Com o título Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje?, Antunes observa que estamos diante de uma nova morfologia da classe trabalhadora, "hoje um conjunto muito ampliado que compreende o operariado industrial, o trabalhador rural assalariado, os assalariados de serviços (como, por exemplo, a operadora que trabalha no telemarketing), os digitadores de bancos, os trabalhadores que atendem os caixas eletrônicos dos supermercados e os desempregados também".


Estivemos no lançamento da revista Margem Esquerda (a revista http://www.boitempo.com/), na Faculdade de História da USP (Universidade de São Paulo), onde entrevistamos o professor Ricardo Antunes (foto).


Debate Sindical - Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje?


Ricardo Antunes - A classe trabalhadora hoje é um conjunto muito ampliado que compreende o operariado industrial, o trabalhador rural assalariado, os assalariados de serviços, como, por exemplo, a operadora que trabalha no telemarketing, os homens e mulheres que trabalham nos supermercados, essa massa de trabalhadores que trabalham nos bancos como digitadores. A classe trabalhadora hoje tem uma nova morfologia. Ela tem o proletariado industrial produtivo, que é o seu núcleo central. Esse proletariado não é mais aquele proletariado estável da era taylorista e fordista (Mais sobre o tema: http://globalization.sites.uol.com.br/toyotism.htm), mas ele é terceirizado, ele é precarizado. Você entra dentro da Volkswagen de Resende (RJ) e tem 1.500 trabalhadores, todos são terceirizados. Todos. Não tem nenhum ligado diretamente à Volkswagen. Eles são ligados aos consórcios modulares. Essa é a classe trabalhadora hoje. E ela inclui também o desempregado. Porque o desempregado é conseqüência do desemprego estrutural, que resulta dessa lógica destrutiva do capital. Então, o desempregado não é desempregado porque ele quer. Ele é desempregado pelo capital. Ele é parte do que o Marx chamava de exército industrial de reserva.


Nós podemos discutir a validade ou não da noção de exército industrial de reserva hoje. Eu penso que essa noção ainda é válida, mas é um debate. O que era um exército industrial menor, hoje é um exército monumental de reserva. Esta é a classe trabalhadora. Esta é a nova morfologia. Então, por exemplo, os motoboys. Eles são parte da classe trabalhadora. Só que nós estamos desafiados a entender que numa nova morfologia da classe trabalhadora significa nova morfologia das lutas sociais também. Por isso nós temos as greves, que são lutas tradicionais; mas temos o movimento dos trabalhadores piqueteiros da Argentina que corta as grandes estradas impedindo a circulação de mercadoria.


Esta é a classe trabalhadora hoje. São todos aqueles, como eu chamo e com hífem, a classe-que-vive-do-trabalho. São todos aqueles que dependem da venda da sua força do trabalho para sobreviver. São os assalariados, que não é novidade nenhuma. Essa discussão é do Marx e do Engels.


Debate Sindical - E quem é o sindicato que representa essa classe trabalhadora?


Ricardo Antunes - Por um lado é aquele sindicato tradicional. Por exemplo, o sindicato dos metalúrgicos representa a categoria metalúrgica; o sindicato dos bancários, os bancários. Agora telemarketing, terceirizados estão desafiados a encontrarem os seus mecanismos de defesa. No caso da Argentina, por exemplo, criou-se o Movimento Social dos Trabalhadores Desempregados. Mas há também na Argentina sindicatos que têm um lado voltado para a organização dos desempregados. Esse é o desafio de criar organismos de representação que sejam sindicais ou sociais para defender esse conjunto de trabalhadores. Por exemplo, já há sindicatos de motoboys no Brasil. Quando você compra uma pizza ou sanduíche por telefone é o motoboy que vai levar. O talão de cheque é o motoboy que vai levar. As mercadorias que dão materialidade à circulação do capital, muitas delas são os motoboys que levam. Eles são parte da classe trabalhadora. Atuam na esfera da circulação de mercadorias, e não na produção.


Por isso tem o segundo debate: a classe trabalhadora para mim supõe um conceito amplo de trabalho, não inclui quem não vende a força de trabalho, é só quem vende a força de trabalho; mas ela compreende o trabalhador produtivo e o trabalhador improdutivo, no sentido dado pelo Marx.


Debate Sindical - É ainda uma classe revolucionária?


Ricardo Antunes - É claro. Eu diria a classe trabalhadora é contingencialmente presa à imediatidade e potencialmente revolucionária. Contingencialmente, ela responde às questões do aqui e agora. Porém ela tem a potência. E o movimento dos trabalhadores da França (Exemplo francês http://conjur.estadao.com.br/static/text/43732,1), há três semanas, mostrou que quando eles saem às ruas muda, muda o mundo. Agora é claro, a revolução do Século XXI é um processo mais complexo do que a revolução dos séculos XX e XIX.


Debate Sindical - Já que estamos falando no futuro do trabalhador, qual é o futuro do capital?


Ricardo Antunes - Acabar com a humanidade, é uma possibilidade. A lógica destrutiva levada ao limite pode eliminar a humanidade. Basta pensar na política belicista da guerra permanente. O segundo futuro da humanidade implica em eliminar o capital. Então o futuro do capital da nossa perspectiva é a sua extinção. A humanidade só pode sobreviver com dignidade e emancipação sem o capital. Então, o desafio nosso é tornar o capital inexistente. Esse é o empreendimento do século XXI. E alguém vai dizer mas isso é impossível, deixa o (Francis) Fukuyama (Quem é - http://en.wikipedia.org/wiki/Francis_Fukuyama e http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29838.shtml) dizer que é impossível. A nós não cabe pensar na impossibilidade disso, mas pensar nas possibilidades da superação do capital.


Fonte: Revista Debate Sindical


Entrevista com Octávio Ianni


Octávio Ianni é uma das maiores referências no meio intelectual quando o assunto é globalização. Vencedor do Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano, Ianni recebeu também o Prêmio da Academia Brasileira de Letras na categoria Ensaio, Crítica e História Literária, pelo seu livro Enigmas da Modernidade – Mundo. Nesta entrevista o sociólogo afirma que vivemos hoje um novo ciclo de expansão capitalista, onde as grandes corporações transnacionais são mais poderosas que os próprios Estados. “De acordo com seus interesses elas apóiam ou derrubam governos”, diz.

O que é a globalização?

É um novo ciclo intensivo e extensivo de desenvolvimento em que o capitalismo ingressou em escala mundial. Mas estou convencido de que se deve falar não apenas sobre globalização, mas sobre mundialização, transacionalização e planetarização. O capitalismo já nasceu mundial, com a viagem de Vasco da Gama, e continuou depois, com o descobrimento do Novo Mundo. Em fins do século XV e começo do século XVI, houve um surto de expansão do capitalismo em termos de mercantilismo, de pirataria e escravismo.

Quem descobriu o Brasil? Não foi Cabral, nem o Caminha, mas o mercantilismo. Em busca de especiarias e minérios, foram decretadas as viagens transcontinentais e as conquistas. Um exemplo mais límpido: o que significa “Argentina”? Vem de argento, prata. O que significa “Brasil”? Vem do pau-brasil. São mercadorias.

Mas o que diferencia o período atual de desenvolvimento do capitalismo?

Uma coisa é mercantilismo, outra coisa é colonialismo, outra distinta é imperialismo. E agora, estamos nesse outro ciclo, o globalismo. O que não significa que não haja mais imperialismos, colonialismos e inclusive mercantilismos. É claro que há. Mas hoje os grandes atores do capitalismo mundial são as grandes corporações transnacionais.

Em geral, elas são assessoradas, direta ou indiretamente, por organizações também transnacionais, como o Grupo dos Oito (G-8), a Conferência de Davos, o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). São organizações multilaterais, constituídas por Estados nacionais que atuam de acordo com a dinâmica dessas corporações.

Por isso, já não dá mais para falar simplesmente em metrópole e colônia, ou em país dominante e dependente. As corporações mandam em certos países muito mais que os próprios governos. E pode ser qualquer governo, mesmo os poderosos, como o Japão, os Estados Unidos ou a Alemanha.

Quando podemos dizer que começou o novo ciclo do capitalismo global?

Quando a Segunda Guerra Mundial destroça o imperialismo francês, belga, italiano, japonês e inglês, começa o globalismo.

A Guerra Fria, que começa em 1946, foi um grande surto de expansão do capitalismo mundial sob o comando dos norte-americanos. Ao bloquear as transformações sociais na África e na América e incentivar o desenvolvimento de grandes empresas, a Guerra Fria foi um ensaio geral para a expansão do capitalismo global.

A Coréia do Sul, Taiwan e Hong Kong se tornaram os Tigres Asiáticos graças às corporações transnacionais e à aliança entre os governos norte-americano, europeu e japonês. Era um muro contra a possibilidade de expansão do mundo socialista.

A geopolitica da Guerra Fria estava apostando muito no Irã, no xá da Pérsia. O Irã seria um dos bastiões do bloqueio às revoluções sociais no mundo árabe.

O Brasil teria a mesma função na América do Sul. E os incentivos dados às corporações acabaram criando condições para uma situação que se consolidou quando caiu o Muro de Berlim. Os países socialistas se transformaram em uma imensa fronteira de expansão de mercados. Desde a antiga Tchecoslováquia até o fim da Sibéria, tudo é uma imensa fronteira de expansão dos negócios das corporações transnacionais. A queda do Muro de Berlim é a derrota provisória do projeto socialista – porque o socialismo não morre por isso – e marca essa mudança radical que resulta no globalismo.

Os antigos monopólios, as grandes empresas se fortalecem ainda mais, a ponto de serem estruturas de poder em escala mundial. Não é preciso fazer pesquisa para saber que qualquer corporação, seja a General Motors, a Ford ou a Volkswagem, tem o seu próprio mapa do mundo. Atuam segundo seus interesses. Se for o caso, apóiam ou derrubam este ou aquele governo. Isto, que já era forte no passado, hoje é mais poderoso.

Qual a dimensão do processo de globalização?

O novo ciclo precisa ser entendido não só como modo de produção ou de organização da economia. Podemos pensar também como um processo civilizatório. Com essa dinâmica, vêm instituições, a mídia, a cultura, a música, os festivais, as competições esportivas. Tudo é internacional. É um processo econômico, financeiro, tecnológico e cultural. Tanto que há músicas que são de difícil identificação, não sabemos dizer se a raiz é caribenha, africana, brasileira ou norte-americana. São músicas com um pouco de tudo, como as roupas e as mercadorias em geral.

Mercadorias são globais, algumas são uma combinação de peças fabricadas em diferentes continentes. E essa globalização não é uma coisa inocente. As organizações transnacionais se tornaram estruturas mundiais muito poderosas, a ponto de o FMI “puxar a orelha” do governo norte-americano pelos problemas financeiros de sua economia.

Mas essas organizações não tendem a agir de acordo com o governo dos EUA?

De fato, porque a economia americana é a mais poderosa. Mas o FMI está pressionando o governo americano para que ele se alinhe e se equilibre, segundo os critérios do Fundo, para que a economia norte-americana e a sua influência no mundo fiquem relativamente sob controle. A globalização abarca inclusive as classes sociais, tanto as dominantes, quanto as subalternas. Hoje, os trabalhadores de certas corporações se sentem irmanados.

Recentemente, na greve da Mercedes, no ABC, havia um operário alemão – falando em alemão – solidário ao movimento que os operários do ABC realizavam. Isso já ocorre em escala mundial, em todos os níveis, claro que com recursos diferentes. A realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, assim como os protestos ocorridos em Gênova e em outras cidades, são provas evidentes de que está havendo uma transnacionalização de diferentes setores populares. Uma prova de que os trabalhadores começam a entender o que é a globalização.

Como explicar essa transnacionalização das outras classes sociais?

A globalização que está acontecendo é de cima para baixo. Se desenvolve conforme os princípios do neoliberalismo, conforme os interesses dos setores dominantes em escala mundial. O resultado é o imenso sacrifício dos diferentes setores sociais.

O desemprego é um exemplo. Na Argentina ele é de 20% e não é verdade que a culpa dessa alta taxa é só do governo argentino. Foi a dinâmica da economia mundial que levou muitas transnacionais a transferir suas empresas de lá para o Brasil e outras partes. A globalização é um fato indiscutível, com complicações não só econômicas, financeiras e tecnológicas, mas também políticas, sociais e culturais.

As manifestações de protesto em várias partes do mundo são de uma tentativa de fazer face à globalização de cima para baixo e propor uma de baixo para cima. É a luta por mais democracia, melhor distribuição da riqueza, evitando que direitos sejam dizimados.

Por que o desemprego acompanha o processo de globalização?

Essa globalização vem acompanhada de uma intensa tecnificação eletrônica dos processos de trabalho e de produção. Tecnificar significa intensificar a presença da máquina, do equipamento, das tecnologias eletrônicas, microeletrônicas, robóticas e de automação e, portanto, eliminar mão-de-obra. Ela não dispensa o trabalho, mas potencializa a capacidade produtiva. Cinco empregados conseguem realizar o que antes demandava cinqüenta.

É mentira que o trabalho está em declínio. É uma análise muito superficial. Na verdade, isso acontece desde 1500, à medida em que se adotam técnicas novas. Estamos vivendo em uma época em que há uma forma de desemprego conjuntural, que resulta do metabolismo normal da economia.

O desemprego estrutural é diferente, é aquele que implica na dispensa a longo prazo do trabalhador, já que seu trabalho foi substituído por outro meio. Faz parte dos desafios que a juventude enfrenta o reconhecimento desses problemas. E é fundamental compreender quais são suas perspectivas no espaço do mercado, no espaço da profissionalização, para que assumam como cidadãos algum tipo de papel no debate sobre os problemas da sociedade.

Qual seria, então, o papel do jovem nesse processo?

Essa geração é desafiada a se repolitizar. Não mais em termos de um projeto político nacional, se o candidato a presidente vai ser esse ou aquele. É preciso entender que agora ele é membro de uma sociedade que é mundial, o jovem é um cidadão do mundo. Precisa tomar consciência de que, se uma grande corporação decide mudar uma fábrica de um país para outro, ela faz isso sem consultar ninguém, nem o presidente, muito menos os trabalhadores. Todos precisam ter esse dicernimento, mas em especial a juventude.


Fonte: Revista Vozes da Globalização